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A Comunhão Anglicana e as Temáticas Nucleares

A Comunhão Anglicana e as Temáticas Nucleares

no esconderijo atômico

em 1969

a consciência se protege

do grupo antagônico

no centro das máquinas

e das tevês

só resta a superfície oca

da abstenção

Rastro de São Mateus CVI 26.56

Jaci C. Maraschin

Imagem: Teste Nuclear frances em Fangataufa em 1968.

Dr. David MoralesO ano 2009 foi significativo com relação à política nuclear mundial.  Depois de 12 anos de estagnação, a Comissão de Desarmamento da ONU, aproveitando o momento propício internacional, reiniciou as negociações direcionadas à Conferência de Revisão do Tratado de Não Proliferação que acontecerá em junho do próximo ano.  Esse momento propício internacional se caracteriza pela emergência de um sentimento favorável às negociações, iniciado em novembro de 2008 com a eleição do Presidente Barac Obama e as esperanças colocadas na nova administração da potência mundial. Em relação à segurança internacional, trouxe de fato uma velha doutrina que até agora nunca foi materializada: a redução da dissuasão nuclear a sua mínima expressão em direção a um mundo livre de armas nucleares (Towards Nuclear Free World -TNFW), fato que traz de novo o desarmamento nuclear ao primeiro plano da agenda internacional.

Conferência Lambeth energia nuclearCuriosamente (e paradoxalmente a esse sentimento positivo e cheio de esperança) no percurso de 2009 emergiram no cenário internacional posições contrárias e desafiadoras aos projetos pacíficos de desarmamento nuclear. Os testes nucleares subterrâneos da Coréia do Norte e o lançamento de três mísseis de curto e meio alcance estremeceram as fortes estruturas da segurança asiática. Também foi motivo de preocupação para as potências ocidentais a tecnologia norte coreana aplicada e seus desdobramentos. Houve, de fato, uma clara violação à Resolução 1718 da ONU. Igualmente o mundo ficou indignado com a descoberta de um plano nuclear paralelo iraniano, revelando uma usina nuclear clandestina escondida dentro de uma montanha, em Natanz. O programa era desconhecido pela Agência Internacional de Energia Atômica –AIEA, que interpretou o fato como um novo desafio à comunidade internacional acrescentando maior instabilidade às frágeis estruturas das relações políticas no Oriente Médio.

O papel das igrejas nessa questão têm sido relevante. Por consenso geral, a arma nuclear sempre foi vista como o maior atropelo à civilização humana por todas as religiões independente de sua matriz de origem. Isto, porque a arma aponta à destruição massiva da humanidade de forma geral e porque no seu interior, ela condensa o destino do mundo ao “apocalipse”, ao “fim do mundo”, e ao destino incerto da nossa existência como espécie. Nesse ponto, todas as religiões concordam em que as armas nucleares além de exterminar inocentes em forma massiva e instantânea, ela destrói o meio ambiente, traz efeitos a curto, medio e longo prazo tanto ao mundo material quanto ao orgânico ou biológico, atentando, assim, contra a dignidade do ser humano e das outras espécies que co-habitam juntamente com ele. 

Na Comunhão Anglicana, várias declarações e resoluções têm sido promulgadas desde os trágicos acontecimentos de 1945 (lançamento das bombas pelos EUA sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki). Através da Conferência de Lambeth a Igreja tem se posicionado e manifestado oficialmente o seu repúdio, não somente ao uso da arma nuclear (sem nenhuma consideração e nem justificativa alguma), mas também ao desnecessário recurso da guerra como forma de solução de conflitos entre os países.  Já desde a Conferência de 1930 (no Período entre Guerras), se fazia um chamado à redução do armamento por meio de um acordo internacional para evitar colocar em perigo a manutenção da frágil paz que existia naquela época.[1]

Na Conferência de Lambeth de 1948, além de repudiar as bombas nas cidades japonesas, foi reafirmado mais uma vez a necessidade de controlar e regular todo tipo de armamento que os países estavam adquirindo para a sua defesa (lembremos que o mundo acabava de sair de duas Grandes Guerras e o temor por um novo confronto era enorme). Nesse sentido, a igreja foi visionária ao proferir na Resolução 10 que o problema da energia nuclear poder-se-ia controlar por uma efetiva inspeção e fiscalização internacional para evitar o desvio na criação de armamento atômico.[2] Posteriormente, em 1957, a Agência Internacional de Energia Atômica seria formalmente constituída pela Organização das Nações Unidas tendo como objetivo a promoção do uso pacífico da energia nuclear e o desencorajamento de usos bélicos.

Já em 1968, a Comunhão Anglicana ciente dos avanços da tecnologia bélica, condenou abertamente o uso de todo tipo de armamento de destruição em massa tanto nuclear quanto bacteriológico.[3] Por essa época, havia um grande movimento normativo mundial e já se estavam negociando e assinando alguns tratados que limitavam o uso das armas nucleares em algumas zonas e espaços geográficos (como o Tratado da Antártica, Tlatelolco e o Tratado de Não Proliferação). Na Conferência de Lambeth de 1978, foi declarado, com profunda indignação e em tom enérgico, que o uso da moderna tecnologia aplicada nas guerras e materializada em armamentos sofisticados seria o claro exemplo de “pecado corporativo” do homem e da “prostituição” dos dons de Deus (referindo-se aos presentes divinos tais como: ciência, tecnologia, inteligência humana, recursos naturais, etc.).[4] Todo esse fato, em plena Guerra Fria, foi um pronunciamento eclesial que demonstrou a preocupação do grau degenerativo em que o homem se encontrava ao atingir a si mesmo como alvo de extermínio em massa, aspecto profundamente contrário à essência dos ensinamentos cristãos.

Em 1988, próximo do fim da Guerra Fria, mais uma vez, a Comunhão Anglicana através da Conferência de Lambeth, tomou posição no contexto internacional e augurou bons resultados derivados da política soviética da Perestróica e fez um chamado aos países da Europa Oriental para apoiar essa abertura e cooperar com o novo momento que parecia até então emergir timidamente. No entanto, segundo a Resolução 32 de Lambeth, pela primeira vez, a Igreja apela diretamente aos países nuclearizados a deter a produção de armamento nuclear e iniciar imediatamente um plano de desarmamento que envolvia tais armas.[5]  O interessante do assunto é que o Reino Unido, berço do Anglicanismo, é hoje uma potência nuclear e a ala religiosa é profundamente crítica e contrária à garantia da segurança do Estado com base em armamento de natureza nuclear. Paradoxo ou não, o cristianismo é a religião mais nuclearizada que existe: os EUA com suas diferentes correntes protestantes, França com o catolicismo, Inglaterra com os anglicanos, e a Rússia com os ortodoxos.

Em 1998 a questão nuclear adquire uma maior relevância na Conferência de Lambeth. A Resolução 1.11 intitulada Bombas Nucleares solicita aos governos insistir para acordar por meio de tratados a interrupção da produção de armamento nuclear como também a execução de testes dessa natureza.[6]  Note-se que pela primeira vez se fala de testes nucleares e da possibilidade de serem desenvolvidas guerras nucleares, isto em resposta aos testes da Índia e do Paquistão que foram realizados justamente nesse ano o que lhes garantiu a categoria de “novas potências nucleares” no cenário internacional. Também a França agilizou seus testes nucleares subterrâneos no Pacífico Sul, principalmente no Atol de Muroroa, para depois se comprometer numa moratória ao assinar o Tratado de Proibição Completa de Testes Nucleares. Outra explosão ocorrida nesse ano foi atribuída a Israel sem ter sido confirmada nem desmentida pelas autoridades, fato que outorgou a esse país o estatuto de nuclearizado, temática que já estava sendo discutida havia algum tempo sobre a sua capacidade bélica.

Por tudo isso, a partir da Resolução de Lambeth 1.11 de 1998 o pensamento da Comunhão Anglicana com relação ao armamento nuclear se direciona aos meios pelos quais podem ser evitados os confrontos que levem a ataques de tipo nuclear: 1- fomento ao desarmamento; 2- penalização pelo uso da arma nuclear; 3- favorecimento de novos tratados que limitem ainda mais a produção desse tipo de armamento.

 

No entanto, há um aparente retrocesso na última conferência de Lambeth acontecida em 2008, curiosamente não houve registro de algum pronunciamento relacionado com a questão nuclear. Assuntos internos de ordem eclesial principalmente as discussões sobre sexualidade ameaçavam com uma ruptura da Igreja, temáticas que ocuparam grande parte das negociações da Conferência.  De qualquer forma houve alguns pronunciamentos sobre os problemas ambientais, de aquecimento global e diálogo inter-religioso.

No entanto, há uma clara posição da igreja com relação à paz e a estabilidade política na península coreana. O pronunciamento 154 da Conferência apóia a reunificação da Coréia como forma para o estabelecimento da paz na Ásia. Lembremos que em 2006 a Coréia do Norte fez o primeiro teste nuclear, sendo repudiado no mundo todo. Apesar do teste ter sido de baixa intensidade, a Coréia do Norte entrou no seleto grupo dos países nuclearizados. O aperfeiçoamento da arma letal seria questão de tempo, mas certamente a Coréia do Norte possui já a tecnologia para desenvolver armas de destruição massiva, o passo seguinte seria aprimorar a tecnologia de dissuasão tais como mísseis e as plataformas de lançamento, tecnologia que foi testada no primeiro semestre de 2009.   

Esse aparente silêncio rompeu com uma continuidade de pronunciamentos oficiais oriundos da Conferência de Lambeth por mais de cinco décadas. Assim, no inicio do século XXI a comunhão anglicana ficou ausente de qualquer posicionamento oficial com relação ao perigo do armamento nuclear, mais ainda quando existem pelo menos três novos países possuidores de tal arma. Igualmente, hoje mais do que nunca, existe o perigo do acesso por parte de grupos terroristas a esse tipo de armamento. A igreja não pode ficar calada diante de tamanha ameaça e deve voltar a se preocupar com estas questões que abalam a existência e continuidade da humanidade.

De qualquer forma, as questões nucleares estiveram presentes na agenda da Comunhão Anglicana. A exemplo disso, em setembro de 2009, o Arcebispo de Canterbury em visita oficial à Igreja Anglicana do Japão, participou do Ato em memória do desastre causado pelas bombas atômicas lançadas em Nagasaki e Hiroshima. Nessa oportunidade, o Arcebispo falou da importância de trabalhar em direção a um mundo livre de armas nucleares (TNFW) evidentemente em concordância com a proposta do Presidente Barac Obama, da qual falamos no início deste artigo. Essa sintonia entre a política da potência mundial e o alinhamento tradicional de uma igreja com presença universal e cujo berço é hoje um Estado nuclearizado (o Reino Unido) é de fato interessante, não somente nas questões teológicas como também no relacionamento com a política e a segurança internacional.

Esse ato político que envolve o Arcebispo de Cantuária se insere justamente no período crítico atual do equilibro da segurança regional asiática. O Japão e a Coréia do Sul são os países que mais enfrentam repercussões geopolíticas a partir da nuclearização do vizinho deles, a Coréia do Norte.  A respeito do anterior, o Arcebispo argumentou que:

[...] trabalhar por um mundo livre de armas nucleares é trabalhar pelo amor de Deus e pela dignidade humana e moral. Somos tentados a pensar que essa tarefa é demasiado difícil.  Uma vez que descobrimos essa tecnologia destrutiva, não podemos pretender que ela vai deixar de existir. Ainda que desejássemos, esse conhecimento já está difundido. Porém, precisamos fazer real a esperança de um mundo livre de armas nucleares e não podemos perder de vista a necessidade de optar por escolhas que materializem essa esperança. Cada passo que damos é um ato que testemunha nessa direção...[7]

Assim, vemos que a igreja como ator político de alcance mundial, é chamada a acompanhar os desdobramentos dos complexos fenômenos internacionais. Nas questões nucleares há  muito ainda por fazer. Existem de fato sérias ameaças à civilização humana que podem decorrer por enfrentamentos militares ou por erros de manipulação tecnológica. O armamento nuclear ainda é enorme e as possibilidades de confronto entre as potências nucleares não têm sido diluídas como o esperado. A Comunhão Anglicana deve atuar conforme ao seu caráter pacificador, tomar cada vez mais participação nas questões cruciais, se posicionando sempre em favor dos princípios da dignidade humana e desenvolver estratégias que fomentem a proibição do armamento nuclear evitando assim a proliferação vertical (sofisticação de armamento) e horizontal (novos países desenvolvendo armas nucelares).

*David Morales é Doutor em Práticas Políticas e Relações Internacionais pelo PROLAM/USP. Professor visitante da Universidade Estadual da Paraíba em Relações Internacionais e membro da Paróquia da Santíssima Trindade em São Paulo. Endereço eletrônico: azulkool@gmail.com

[1] The Lambeth Conference. Resolution Archive from 1930. Resolution 28: The Life and Witness of the Christian Community – Peace and World. Anglican Consultantive Council. Anglican Communion Office Publishing, London, 2005.

2 The Lambeth Conference. Resolution Archive from 1948. Resolutions 9-15: The Church and the Modern World – Peace and War. Anglican Consultantive Council. Anglican Communion Office Publishing, London, 2005.

3 The Lambeth Conference. Resolution Archive from 1968.  Resolution 8 (a), (b): War. Anglican Consultantive Council. Anglican Communion Office Publishing, London, 2005.

4 The Lambeth Conference. Resolution Archive from 1978.  Resolution 5 (1-2-3): War and Violence. Anglican Consultantive Council. Anglican Communion Office Publishing, London, 2005. 

5 The Lambeth Conference. Resolution Archive from 1988. Resolution 32: World Peace. Anglican Consultantive Council. Anglican Communion Office Publishing, London, 2005.

6 Igreja Episcopal Anglicana do Brasil. Resoluções da Conferência de Lambeth 1998. Resolução 1.11: Bombas Nucleares. Centro de Estudos Anglicanos, Porto Alegre, 2000. 

7 ACNS – Anglican Communion News Service. Archbischop of Canterbury Backs Efforts for a World Free of Nuclear Arms. 24.09.2009 Disponível em: www.anglicancommunion.org Acesso em: 30.11.2009.