LGBT+ e Igreja Anglicana

Texto do Reverendo Arthur Cavalcante: Deão da Catedral Anglicana da Santíssima Trindade de São Paulo. Teólogo, Mestre em Ciências da Religião UMESP e Psicanalista

1. Qual a posição Oficial da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB) sobre a temática da inclusão de LGBT+ na Fé Cristã?

Ao tocar no tema da inclusividade, gostaria de ressaltar que a IEAB não faz parte das chamadas “igrejas inclusivas”, que surgiram ou foram pensadas para atender pastoralmente determinado perfil de pessoa fiel. A IEAB é uma Igreja centenária e tradicional, que vai se tornando mais e mais acolhedora para LGBT+ por meio de processos orgânicos e diálogos internos ao longo de aproximadamente duas décadas (1997-2018), ou seja, desde a publicação da Carta Pastoral da Câmara Episcopal sobre Sexualidade Humana até a aprovação do cânon sobre o Casamento Igualitário no 34º Sínodo Geral, em 2018. Este processo foi, e continua sendo, uma conversão diária de corações e mentes, de pessoas clérigas e leigas, no compromisso de acolhida, amor, respeito e reconhecimento.

2. O que isso quer dizer na prática?

Além de mudanças nas principais instâncias de decisão da Igreja Anglicana, a boa nova de Cristo e a missão de proclamar e viver a plenitude de vida não nos permitem compactuar de discursos que estigmatizam a vida de LGBT+ como pessoas pecadoras e que as impeçam de amar, formarem família, serem pais e mães. Nesse sentido, reconhecemos que todas as pessoas têm direitos espirituais em participar plenamente da vivência da fé, incluindo receber os Sacramentos como Eucaristia (Santa Ceia) e Batismo, disponíveis a filhos e filhas de Deus. E assim, empoderadas pela Ruah divina, o sopro de Deus (Espírito Santo) poderão servir plenamente, junto à toda a comunidade cristã, com seus dons e habilidades, inclusive para a vocação pastoral. Em resumo, as estruturas administrativas e eclesiais, as pessoas clérigas e leigas, a liturgia e a teologia da IEAB reconhecem, humildemente, que está em nossa missão possibilitar que pessoas LGBT+ sejam quem são nos espaços e atuações pastoral, ministerial ou administrativa. Toda pessoa deve receber o Batismo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Podem tomar a Santa Comunhão, a presença real de Jesus Cristo no Pão e no Vinho. Têm direito a, de acordo com sua vocação, exercer qualquer uma das três ordens religiosas: diáconos (as), presbíteros (as) e bispos (as). A pessoa LGBT+ também tem direito ao Sacramento do Matrimônio em nossos templos e de trazerem suas crianças e famílias para o convívio comunitário da fé e da partilha.

3. Qual é a posição da Igreja Anglicana sobre os textos bíblicos que supostamente “condenam” a homossexualidade?

O preconceito instalado em muitos espaços religiosos, na verdade reflete exatamente o preconceito que perpassa a sociedade no Brasil e que vai se reforçando culturalmente vai reforçando essa resistência à diversidade sexual. Nas Igrejas que se proclamam guardiãs da tradição e da fé, o preconceito parece ter uma áurea de proteção, invocada sob o Sagrado. Com essas lentes é que são feitas muitas leituras condenatórias, há exclusão na interpretação e na contextualização dos textos bíblicos. Apela-se para as Escrituras Sagradas, mas, a verdade é que sermões e declarações religiosas de condenações e ódio aos LGBT refletem crenças culturais preconceituosas acumuladas ao longo da história, e o pouco compromisso de trazer interpretações bíblicas honestas, contextualizadas, atentas às demandas de nossos dias, os saberes científicos sobre as questões de sexualidade. Há uma pressa em condenar e rotular vidas que são preciosas aos olhos de Deus. Por isso, a afirmação de Jesus Cristo confronta ainda hoje a religiosidade inquisidora, dona de uma verdade fraudulenta: “Se vocês soubessem o que significa: Misericórdia quero, e não sacrifício, não condenariam as pessoas inocentes” (Mateus 12,7). Não podemos achar que somos melhores do que Jesus Cristo, e não temos autorização para definir quem é ou não é filho ou filha de Deus. 

Costumo dizer, que com a Bíblia, pode-se justificar ou dar legitimidade a todo tipo de ações e sentimentos que estejam em nosso coração. Nosso olhar seleciona os textos que vamos acolher, que podem ensinar como amar ou como odiar, como acolher ou como discriminar. O problema não está no livro sagrado, mas nas paixões que direcionam o jeito de ver, de se relacionar com as pessoas e com o mundo.

Na Igreja Anglicana há um olhar singular para a Bíblia, em especial sobre a compreensão da autoridade dos textos bíblicos. O Reverendo Dr. Pedro Triana (2010), um teólogo respeitável da IEAB e da Comunhão Anglicana, alerta sobre a quebra de um dos “pilares do pensamento teológico anglicano” introduzido pelo teólogo Richard Hooker, no século 16 e que marca a diferença do anglicanismo com o puritanismo:

Apesar do anglicanismo ter sempre considerado a Bíblia como central, nunca expressou ou definiu claramente o caráter e função de sua autoridade. Deve-se isto a que o anglicanismo, quando mantém que os Credos ‘podem ser provados pelas Escrituras (7º artigo dos Artigos de Religião) e que a Igreja ‘tem poder para decretar ritos e cerimônias e ser autoridade em controvérsias de fé sempre que não se afastem do estabelecido pela Palavra escrita de Deus (20º Artigo), se afasta do princípio da Sola Scriptura dos mais rigorosos reformadores, introduzindo a Tradição como medida de qualificação e critério; e a  introdução da Tradição como critério hermenêutico faz que a prática da Igreja (tradição) possa influir em como as Escrituras em si mesmas foram e devem ser lidas.

Finalmente, entra no processo interpretativo, outro pilar anunciado por Hooker, a Razão, que conduzida pelo Espírito Santo, não pode ser excluída do processo. Com base nos princípios hermenêuticos expressos anteriormente, gostaria de enfatizar, quando vemos o uso, ou melhor, o mau uso das Escrituras para legitimar as marginalizações, a exclusão e a condenação das pessoas LGBT+, que não podemos usar a Bíblia como um livro de perguntas e respostas para nosso próprio tempo, ou como um livro de receitas éticas e morais.  (TRIANA, Pedro (2010). “Não julgue… somente compreenda”. Bíblia e Sexualidade: abordagem teológica, pastoral e bíblica. São Paulo: Fonte Editorial. p. 303-304)

Toda a interpretação bíblica para nós deve ser através das “lentes” do ensino de Jesus Cristo presentes nos 4 Evangelhos. Ele é a Palavra Viva de Deus! A Igreja Anglicana, inspirada no ensino evangélico, atende ao chamado para acolher e amar, tornar seus templos espaço seguros para exercer a fé.  Lembrando as palavras do apóstolo Paulo: “Não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher; pois todos são um em Cristo Jesus” (Gálatas 3,28). E ainda, inspirada nas palavras de João, uma ordem para que parte da humanidade abandone o medo e o ódio irracional contra a comunidade LGBT+: “No amor não há medo; ao contrário o perfeito amor expulsa o medo, porque o medo supõe castigo. Aquele que tem medo não está aperfeiçoado no amor” (1 João 4,18).

Reafirme-se que há muitas formas de interpretar os textos bíblicos sobre a sexualidade, como também, há para outros tantos textos polêmicos que, seletivamente, são lidos com a “razão”, com o bom senso, para dar um sentido mais palatável como aquele que manda vender tudo o que tem e dar aos pobres, arrancar o olho ou a mão que te fazem levar, não costurar roupas tipos diferentes de tecido. A pergunta que fica: por que escolher textos da Bíblia para estimular o ódio, o preconceito e instalar o pânico moral e disseminação de fake news nas redes sociais? E, por que não escolher os textos que falam do amor incondicional de Deus pela humanidade? O critério de interpretação deve ser o mesmo aplicado para todos os textos.

4. Que direcionamento de fé podemos oferecer para fiéis LGBT+ que se desligaram ou sofreram exclusão de suas igrejas de origem?

Aconselho a, sempre que possível, vivenciar a fé em uma Igreja em que a acolhida é um compromisso. O cristianismo procura agregar a fé vivida na intimidade com a prática na comunidade. A religião, como um espaço de sentido, de subjetividades é, por isso, muito importante para a saúde mental e do corpo. Quando podemos vivenciar nossa espiritualidade numa comunidade de fé, potencializa-se todo o nosso ser e também o contexto no qual nos encontramos.

A fé cresce e amadurece com a vivência comunitária. Diminuem-se, assim, as chances de uma fé alienada da sociedade e das bases do Evangelho de Jesus Cristo. O texto dos Atos dos Apóstolos 2.1, 42-44, 47 enfatiza a bênção para quem escolheu vivenciar sua fé na Igreja: “Chegando o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos num só lugar […] Eles se dedicavam ao ensino dos apóstolos e à comunhão, ao partir do pão e às orações. Todos estavam cheios de temor, e muitas maravilhas e sinais eram feitos pelos apóstolos […] louvando a Deus e tendo a simpatia de todo o povo. E o Senhor lhes acrescentava todos os dias os que iam sendo salvos”.  É esta a espiritualidade que buscamos viver, edificar uma Igreja segura e receptiva, que cura as feridas em vez de causá-las.

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